FESTIVAL DO RIO: OLMO E A GAIVOTA (Petra Costa e Lea Glob, 2015)

10/10/2015 por Renato Furtado no Cinema2Manos

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NOTA: 8,5 / Renato Furtado

Truques de ilusionismo são ótimos e divertidos espetáculos, mesmo quando não muito bons. Nesse caso, nos encantamos com as mágicas realizadas na nossa frente mas, normalmente, sempre acabamos tentando descobrir como aquelas coisas foram feitas, como a carta apareceu onde não devia, ou como surgiu algo de dentro de uma cartola ou como alguém acorrentado escapou de um tanque segundos antes de ter os pulmões enchidos de água, fatalmente. Porém, contudo, entretanto, todavia, às vezes presenciamos um bom show de mágica, um realmente bom. Para mim, isso acontece quando a ilusão é tão boa, mas tão boa que não paramos para nos importar em como foi feito, como as engrenagens por trás do truque giram com medo de quebrar a magia. Olmo e a Gaivota entra nessa categoria.

As diretoras Petra Costa (do maravilhoso, incrível, arrebatador e destruidor Elena, um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos) e Lea Glob filmam um casal de atores durante nove meses, ou seja, o tempo em que a atriz está grávida, o que acarreta com que ela se afaste dos palcos e da personagem principal da peça “A Gaivota” do mestre russo Anton Tchekov, para a qual ensaiava. Enquanto o marido, Serge, ensaia, acompanhamos Olivia em seu período de gravidez e seguimos seus passos em um intenso mergulho poético e existencial pela vida, em si. O pulo do gato entra aqui: Costa e Glob realizam uma estrutura cinematográfica tão incrivelmente rica que não sabemos onde começa a ficção e termina o documentário e vice-versa.

Sabemos, de antemão, que é um documentário, mas o tempo inteiro duvidamos dessa informação. Montando as cenas entre seus personagens (ou pessoas reais) com uma clara veia ficcional, as duas diretoras surpreendem quando, em certos momentos, mostram que estão logo ali, atrás da câmera, interagindo com os atores (ou as pessoas reais que são atores) nos instantes corretos, sem nunca quebrar a beleza da narrativa – muito pelo contrário, apenas aprimorando-a.

A sensibilidade da direção e da montagem nos trazem momentos do passado através de vídeos caseiros montados em conjunto à narração de Olivia, trazem cenas da peça e da interação entre os personagens do casal, os personagens principais de um texto crucial para o filme – reza a lenda que Tchekov pretendia que A Gaivota fosse uma comédia e não um drama ou uma tragédia, como acabou sendo encenada muitas vezes durante os anos, o que de modo algum é uma coincidência dentro da narrativa de Olmo e a Gaivota – e, ainda, trazem cenas da hilária interação entre Serge e Olivia onde são provocadas boas e sinceras risadas, balanceando na medida certa o peso de Olmo e a Gaivota, sem sobrar ou faltar o peso necessário à trama.

Não vou comentar muito mais sobre essa questão estrutural porque acredito ser um ótimo dispositivo do filme e não quero estragá-lo. Portanto, o que me resta dizer ainda é que é incrível quando um filme faz isso com a gente, nos engana e nos ilude, deixando a gente com mais vontade de ser enganado e iludido pela beleza do truque, pela beleza da magia do cinema, dessa arte incrível dessa vida incrível. No fim das contas, as coisas nem sempre tem que se dividir em dois caminhos distintos e antagônicos, nem sempre são sim ou não, vai ou fica, arte e vida, cinema e realidade: às vezes, a vida é também arte e a arte é também vida e é simplesmente belo quando é assim.


[Cinema] Olmo e A Gaivota

13/10/15 por SERIECINEBOOKS

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Vida e arte, ficção e realidade.

Olmo e a Gaivota é um dos muitos filmes exibidos pelo Festival do Rio. E até dia 14 você terá a chance de conhecer esse e outros novos trabalhos, brasileiros e do resto do mundo.

Nesse longa acompanhamos um pedaço da vida de dois atores do Théâtre du Soleil, Serge e Olivia. Ambos se preparam para encenar A Gaivota de Tchekhov, mas quando a peça começa a tomar forma, o casal descobre que vão ter um filho. Inicialmente, Olivia continua trabalhando, só que a partir do quarto mês passa a ficar em casa, pois sua gravidez é de risco.

Quando então passamos a acompanhar Olivia no seu dia-a-dia, mergulhamos em seus conflitos internos, na sua busca por uma nova filosofia de vida e no desafio de interpretar a si mesma. Para mim esse é o ponto mais interessante do filme: ele é um documentário. Isso porém não fica claro logo de início. Só percebemos através de sutis comentários provenientes da pessoa por traz das câmeras. Mesmo assim o filme não possui para mim o caráter de documentário. Ele está tão envolvido com a poesia do teatro mesclada tão bem com a ficção e a realidade, que se me fosse dito que aquela voz é a consciência da personagem eu acreditaria. Na verdade, funciona melhor para mim assim do que de qualquer outro modo.

É uma proposta diferente, não estamos acostumados com isso. Devo admitir que se começarem a fazer mais documentários assim, eu que não gosto muito desse gênero, vou me tornar uma grande fã deles. Como há um toque de realidade no filme, podemos literalmente acompanhar as mudanças no corpo da atriz durante a gravidez. Nos apropriamos das suas inseguranças, sentimos seus medos e aproveitamos os bons momentos tanto quanto ela.

Acredito que o cinema está seguindo um bom caminho nesse aspecto, precisamos de mais filmes assim. E mais importante do que ter filmes assim, precisamos de cada vez mais pessoas dispostas a assisti-los. Eu particularmente só fiquei sabendo desse filme em específico graças ao Festival. Gostaria que esse e tantos outros filmes de arte tivessem maior visibilidade, não só aqui no Rio, mas em todo país.

Se você que agora lê essa crítica está no Rio, ainda dá tempo de ir ao festival! Tem filmes para todos os tipos de gosto. Recomendo Olmo e a Gaivota para todos aqueles que buscam a sutileza da arte e a sensibilidade do ser humano mesclados em uma peça de teatro que se chama vida.



Diretora de 'Elena' mistura ficção, realidade e Tchékhov em novo filme

11/08/2015 por Lucas Neves na FOLHA ILUSTRADA

Uma atriz fictícia de 30 e poucos anos, dez de palco, descobre-se grávida durante os ensaios, também fictícios, de "A Gaivota", de Tchékhov (1860-1904).

Seu papel é o de Arkádina na peça russa –cujo enredo apanha duas atrizes em pontos opostos: o começo cheio de sonho e medo de Nina, e a maturidade e o fantasma da obsolescência da colega Arkádina.

Às camadas de ficção o filme "Olmo e a Gaivota", exibido no Festival de Locarno (Suíça), sobrepõe uma documental. É uma atriz de fato grávida e com uma década de carreira, a italiana Olivia Corsini, que se confunde com as colegas de ofício imaginárias.

O projeto da brasileira Petra Costa ("Elena") e da dinamarquesa Lea Glob começou com a ideia de mostrar a intimidade de uma atriz por um dia.

Quando Corsini, ex-integrante do Théâtre du Soleil, contou às diretoras que seria mãe, 24 horas viraram quase nove meses. As cineastas misturam a tal ponto a vida de Corsini com a da personagem que a atriz interpreta para "Olmo e a Gaivota" que se torna difícil distinguir ficção e realidade.

A atriz tinha como "dever de casa" anotar seus questionamentos sobre a nova fase: como equilibrar teatro e maternidade? O que um bebê representava para a relação dela com o companheiro, o também ator Serge Nicolaï? E por aí vai. Os apontamentos viraram narrações em "off".

Corsini e Nicolaï também improvisavam em cima de deixas das cineastas, como "falem sobre o nome do bebê", "briguem" ou "refaça [a cena] com mais vulnerabilidade" (esta, ouvida no filme).

"Não pudemos filmar o nascimento. Isso foi estabelecido desde o início", diz Costa. "O filme se constrói nessa fronteira entre o que é privado ou não. Os momentos em que chegamos a lugares incômodos são os mais ricos."

Glob, formada no documentário direto (quando não se interfere na realidade diante da câmera), diz ter aprendido "o valor de ser provocativo". Ela escolhia objetos/adereços para estimular o jogo dos atores e ditava quem estaria em cena; Costa e suas perguntas "atiçavam o incêndio", nas palavras desta.

"A Gaivota" pousou no projeto por sugestão de Martha Perrone, colaboradora do roteiro. "As questões que queríamos discutir estavam lá. Nina busca reconhecimento e quase enlouquece. Mas sai da história maior. Arkádina encarna o envelhecimento", diz Costa.

A peça oferece a ela também a sublimação de uma tragédia pessoal: o suicídio da irmã mais velha, a protagonista ausente de "Elena". O filme tinha como imagem-guia o afogamento da Ofélia de "Hamlet".

"Tchékhov dizia que 'A Gaivota' relia Shakespeare. É como se ele perguntasse, por meio da personagem Nina: e se Ofélia não tivesse se matado? E se Elena não tivesse morrido? Teria se casado, tido filhos?", compara Costa.

"Olmo" é a brisa que leva Elena de volta aos ares.

O jornalista LUCAS NEVES está hospedado em Locarno a convite da organização do festival


A “safada” que “abandonou” seu bebê

12/10/2015 por Eliane Brum no El País

Nos últimos dias, o Brasil elegeu uma nova vilã para lançar na fogueira do moralismo. Sandra Maria dos Santos Queiroz, 37 anos, é uma nordestina de Vitória da Conquista, na Bahia, que migrou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica. No domingo, 4 de outubro, Sandra pariu sozinha, escondida no banheiro anexo ao quarto de empregada, a sua terceira criança. O primeiro, um garoto de 17 anos, é criado por parentes na Bahia. A segunda, uma menina de três anos, vive com ela na casa dos patrões, no bairro nobre de Higienópolis. Sandra escondeu a gravidez por nove meses e passou por todas as dores do parto, que tanto atemorizam as mulheres, sem fazer alarde. Cortou ela mesma o cordão umbilical. Amamentou a criança, embrulhou-a, colocou-a não em qualquer sacola, mas numa bem chique – “Au Pied de Cochon”, nome de um restaurante tradicional de Paris –, o que diz muito. Deixou-a embaixo de uma árvore, diante de um prédio. Escondeu-se e ficou esperando até ter certeza de que o bebê seria encontrado. Neste momento, outro empregado da vizinhança, o zelador Francisco de Assis Marinho, migrante da Paraíba, estranhou a sacola, levantou-a, pelo peso concluiu que era roupa, e deixou-a cair. O bebê chorou. Francisco chamou a polícia, sonhou com adotar a menina, afirmou que sentiu amor imediato pela criança. No drama de Higienópolis, emergem dos bastidores da cena cotidiana do bairro dois personagens em geral invisíveis: o zelador e a doméstica. Ele tornou-se o herói. Ela, a mãe desnaturada.

“Safada” é o termo que outro trabalhador das zonas cinzentas, um segurança, escolhe para se referir à Sandra, como conta a repórter Camila Moraes, num texto imprescindível. “Por que você abandonou a criança?”, gritavam jornalistas, quando ela foi detida pela polícia. No Brasil, “abandonar” um bebê é crime punido com até três anos de prisão, pena que pode aumentar em um terço quando é a mãe ou outro parente próximo que consuma o ato. Sandra foi flagrada por câmeras de segurança instaladas para detectar estranhos ao bairro. Ela foi identificada, levada para a delegacia e exposta. Depois, liberada para esperar a sentença. O bebê foi levado a um hospital, já teve alta e pode ser colocado para adoção.

Neste enredo da vida real, Francisco, o zelador, encarna o lado virtuoso do homem que não fecundou, mas quer se tornar pai. E, assim, apaga a ausência eloquente do homem pelo qual quase ninguém pergunta, aquele que é tão responsável pela gravidez quanto Sandra. Ela, Sandra, só pode ser transformada em vilã por ser vítima do mito da maternidade.

Nos últimos anos, o Brasil viu crescer um movimento forte, criativo e solidário, de defesa e resgate do parto natural e humanizado, para que a mulher recupere o protagonismo no nascimento das crianças, sequestrado pela autoridade médica no país campeão mundial de cesarianas. Também há um movimento forte e bem mais antigo, nascido junto com os vários feminismos, pela descriminalização do aborto.

Defender o protagonismo das mulheres no parto e defender a descriminalização do aborto fala do mesmo direito: o de autonomia sobre o próprio corpo

No Brasil, o aborto só é permitido em três casos: gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mulher e gestação de feto anencefálico, uma anomalia incompatível com a vida. Na prática, o aborto obedece à lógica do apartheid racial e social que rege o cotidiano do país: é acessível às mulheres que podem pagar por ele em clínicas seguras e vetado para as mulheres que não podem pagar por ele, as mais pobres, a maioria delas negras e jovens, que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS). Estas se submetem a charlatões e a condições perigosas, ou apelam para expedientes solitários e desesperados. Muitas morrem na tentativa de interromper a gestação de uma criança que não querem ou não podem ter, fazendo do aborto a quinta causa de morte materna no país. A criminalização do aborto é, na prática, uma máquina estatal de produzir cadáveres femininos. E também órfãos, já que parte destas mulheres têm outros filhos esperando-as em casa. Pesquisas mostram que a morte da mãe multiplica as fragilidades e acentua a miséria, condenando a família que restou.

Defender o protagonismo das mulheres no parto e defender o direito de as mulheres decidirem se querem ou não levar uma gestação adiante não é uma coisa e outra coisa. É a mesma coisa, embora parte das militantes de um movimento e outro não encarem dessa forma. Trata-se do respeito à autonomia da mulher sobre o seu corpo, hoje submetido pela autoridade médica, no primeiro caso, pelo Estado, no segundo. E há que se dar um passo a mais se as mulheres contemporâneas quiserem recuperar o controle sobre si mesmas: é preciso lutar ao lado de Sandra – e de todas as Sandras – para que ela não seja reduzida a uma pária social.

Para isso, é preciso confrontar o mito da maternidade, que esmaga as mulheres há tantos séculos. A ideia de que ser mãe é a realização suprema de qualquer mulher e de que nos tornamos mulheres mais completas ao vivermos a experiência da maternidade é uma armadilha na qual algumas de nós caem alegremente. Outras até mesmo se atiram. Ainda hoje, mulheres que não têm filhos são vistas por muitas de suas contemporâneas esclarecidas como uma espécie de ser pela metade. Ora histérica, ora frustrada. Para sempre incompleta. No mesmo sentido, é preciso combater a ideia de que a maternidade é feliz. E feliz mesmo quando é triste, o clássico clichê do “ser mãe é padecer no paraíso”. O lugar mitificado dado à maternidade por uma série de razões históricas reduz mulheres como Sandra a “safadas”, no jargão popular, a criminosas no Código Penal.

Também jornalistas agrediram Sandra com a pergunta supostamente legítima: “Por que você abandonou a criança?”. Digo supostamente legítima porque o verbo “abandonar” já revela um julgamento – e não um fato. E de imediato produz um estigma, com grande repercussão no imaginário: o da mãe “abandonadora”. Se foi abandono ou não, só a história de Sandra poderá mostrar. O fato é que ela deixou a criança ao pé de uma árvore. Com o que sabemos, o mais provável é que ela não abandonou o bebê. Ela talvez tenha dado a criança. E a mudança do verbo – de “abandonar” para “dar” – pode mudar a interpretação do movimento feito por Sandra.

Na medida das suas circunstâncias, desejando ficar anônima por medo de perder o emprego, como ela diria depois, planejou deixar a criança num local visível, para que fosse encontrada o mais rapidamente possível. E certificou-se de que isso aconteceria. Conhecedora dos hábitos da vizinhança, Sandra sabia que alguém se surpreenderia com a sacola junto a uma árvore. Como disse Francisco, o zelador que resgatou o bebê: “Sei que domingo não é dia de coleta de lixo. Fiquei curioso (com a sacola)”.

O gozo da mulher é sempre passível de punição

Sandra também sabe que domingo não é dia de coleta de lixo. E que a sacola despertaria a curiosidade daqueles que precisam zelar pela limpeza diante dos prédios, sob pena de perder seus empregos. Vale lembrar que a clássica cena de filme de Hollywood, em que a mãe desesperada deixa o bebê na porta de uma mansão, toca a campainha e esconde-se aos prantos para ter certeza de que seu bebê ficará em boas mãos, não é possível na metrópole murada, o território de cada um protegido por grades, alarmes e cercas eletrificadas. Sandra fez a versão possível dessa cena, que no cinema desperta tanta compaixão e lágrimas pela mulher, e na vida real apenas fúria e dedos em riste. Deixou a criança no melhor lugar que podia, junto a uma árvore. E esperou.

Diante da pergunta de por que abandonou o bebê, Sandra, tapando o rosto, disse: “Por desespero”. É obrigatório escutar essa resposta. “Por desespero.” A profundidade das circunstâncias de Sandra não são conhecidas. Mas é possível compreender o pouco que se sabe: uma migrante nordestina trabalhando como doméstica em São Paulo, com um filho adolescente criado longe dela, outra filha pequena criada na casa dos patrões. Como ter um terceiro filho? Neste momento, como o enredo é mais do que previsível, berram os de sempre, salivando seu ódio: “Mas na hora de fazer gostou, né?”. O gozo da mulher é sempre passível de punição. Há sempre uma sem-vergonhice embutida na sexualidade da mulher. Afinal, na moralidade cristã, o sexo só pode ser justificado pela reprodução. E assim, o “safada” usado pelo segurança para se referir à Sandra ganha também a conotação sexual, já que ela não quis se tornar mãe daquela criança, esvaziando o ato sexual de legitimidade moral e transformando-o numa “safadeza”.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é reconhecer que a maternidade não é a escolha de todas as mulheres

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra não é tirar a responsabilidade de Sandra. Esta seria apenas mais uma violência contra ela. Tratar como “incapaz” ou como “louca” aquela que escolhe não ser mãe parece ser a única justificativa aceitável para a sociedade. É isso ou o linchamento moral – e às vezes físico. Como se a “safada” só pudesse ser parcialmente redimida ao ser convertida em “doida”. E como se de “safada” a “doida” houvesse uma melhora de status. Alternativas que respeitem a autonomia e a dignidade da mulher inexistem neste caso, e isso deveria revoltar homens e mulheres dispostos ao pensamento.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é reconhecer que a maternidade pode não ser a escolha de todas. E pelas mais variadas razões, que deveriam dizer respeito apenas àquelas que escolhem. Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é, principalmente, reconhecer que a maternidade pode ser aterrorizante mesmo para aquelas que escolhem se tornar mães. Nesta época em que tudo pode ser dito de forma testemunhal nas redes sociais, é hora de abrir a temporada de relatos confessionais sobre o quanto a gravidez pode provocar pavor mesmo para aquelas mulheres que sonharam com ela e a planejaram e têm todas as condições materiais para criar seus filhos. Uma situação, é fundamental lembrar, totalmente distante da realidade de Sandra, que não tinha nenhuma dessas condições.

É preciso gritar que a gravidez pode ser uma experiência aterrorizante

É preciso dizer, bem alto e com todas as palavras, que para muitas de nós, mulheres, a criança crescendo no útero, alimentando-se de nós, é um alien. Esta foi também a minha sensação ao engravidar e experimentar a gravidez. A frase mais perfeita sobre o potencial de horror contido na experiência da maternidade é expressado nessa frase da escritora francesa Colette Audry: “Uma nova pessoa que entrou na sua vida sem vir de fora”. Pode ter algo mais aterrorizante do que esse estranho íntimo que invade as suas entranhas desde dentro e cresce sem parar e que um dia terá de sair dali? Eu só mudaria nessa frase a palavra “pessoa”. Minha sensação, e a de outras mulheres com quem conversei, é de que não temos a certeza de que é de fato uma pessoa. Pode ter qualquer forma esse alienígena. E essa também é uma expectativa bastante assombradora sobre o momento do parto.

Neste ponto, há outro tabu que precisamos quebrar com urgência. A de que a mulher ama seu filho desde sempre e é mãe desde o momento da gestação. O ato de engravidar e parir não torna uma mulher também uma mãe, nem torna a criança que nasce um filho. Tanto a mãe quanto o filho se tornam – ou não. São dois os nascimentos dessa história. Só um deles é certeza. Se haverá o segundo parto, aquele em que nasce uma mãe e um filho, não se sabe. Lembro-me de que, ao voltar para casa depois do parto, fiquei sozinha no meu quarto com a criança. Eu olhei para ela, ela olhou para mim. Nós duas choramos. Eu me perguntava: “quem é esta?”. Até hoje estou buscando a resposta, o que é fascinante. Naquela indagação empreendi o longo e incompleto caminho que me tornou mãe – e que tornou aquela menina minha filha.

Para se tornar mãe e filho é preciso um segundo nascimento, que pode acontecer ou não

No caso de Sandra e de tantas, por uma série de circunstâncias que se dão em cada história – sempre única, singular e intransferível –, pode haver o ato da gravidez e do parto sem que isso signifique tornar-se mãe e tornar-se filho. No caso de Sandra e de tantas, poderá existir uma outra mulher que se tornará mãe daquela criança e fará dela um filho, sem passar pela gravidez e pelo parto. Ou haverá um homem que se tornará mãe daquela criança e fará dela um filho. A maternidade não é prerrogativa exclusiva da mulher, nem tem nada a ver com gênero. Às vezes, inclusive, é coletiva. Tudo o que NÃO precisamos neste momento da história, e esse pode ser um alerta importante para muitas militantes, é de supermães, competindo para ver quem é mais extraordinária do que a outra. Supermãe é o superlativo que nos apequena a todas, a começar por aquela que arrota sua competência na maternagem. Quando nos tornamos de fato mães, somos todas condenadas apenas à imperfeição do possível.

O aumento do número de mulheres no cinema, na literatura e nas artes, assim como no jornalismo, tem impactado no questionamento de mitos como o da maternidade. É nesse contexto que se insere um filme muito delicado exibido no Festival do Rio, no início de outubro, que estreará nos cinemas brasileiros em novembro. Em Olmo e A Gaivota, um casal de atores do Théâtre du Soleil, Olivia Corsini e Serge Nicolaï, representam a si mesmos na experiência da gravidez real da atriz, enquanto é encenada a peça A Gaivota, do russo Anton Tchekhov. O documentário é dirigido pela brasileira Petra Costa, do belíssimo Elena, e pela dinamarquesa Lea Glob, com produção executiva de Tim Robbins.

(Alerta de spoiler: quem preferir assistir ao filme sem nada saber sobre ele, pule os próximos três parágrafos e volte ao texto em seguida.)

Como a gravidez é de risco, Olivia precisa deixar a peça e o mundo do teatro, onde ela e Serge viviam muito mais na pele de outros personagens do que na própria. Olivia terá de fazer algo ainda mais arriscado do que representar a Arkádina da peça de Tchekhov, não por acaso uma atriz com medo de envelhecer e perder o lugar. Olivia terá de vestir o próprio corpo invadido por essa criatura desconhecida e voraz. A certo momento, Olivia diz: “Todas as mulheres me dizem que ah, a gravidez, que momento extraordinário, que momento maravilhoso... Só se for depois”. Mais tarde, um dos seus dentes amolece. Uma amiga explica a ela, com naturalidade acachapante, que é usual perder dentes durante a gestação, “porque o bebê precisa de cálcio”. Olivia fica aterrorizada: “Como se fosse normal perder pedaços...”. Ela sente que há um “alien” dentro dela, alimentando-se dela, “impondo as regras do jogo”.

Entre Olivia e Serge, que continua no mundo em que sempre esteve, o corpo habitado na maior parte do tempo apenas por personagens da ficção, a tensão é crescente. Numa discussão, Olivia quer saber se a atriz que a substituiu é melhor do que ela, porque afinal também há isso. Desde que engravidou, ela já não é nem a atriz principal nem a mais jovem, mas aquela que envelhece e que não sabe se haverá um lugar para ela depois do parto. Serge diz que está cansado e que cada um deles tem seu própria cotidiano pesado: “Tenho o meu presente, e você tem o seu”. Olivia retruca com um gesto: “Stop!”. E continua: “Meu presente é seu também, mas só eu o carrego”.

“Há um alien dentro de mim. Meu presente é seu também, mas só eu o carrego”

Olmo e A Gaivota é um filme precioso. Ao final sabemos o que todas as mulheres intuem ao engravidar. Muito mais do que a sagração do feminino, a experiência da maternidade é o sepultamento da mulher que existia antes. Haverá outra, que ainda precisará saber quem é, mas não aquela. Todo nascimento de um filho é também o nascimento de uma mãe – e a morte de uma das tantas mulheres que somos ao longo de uma vida. Fascinante, sim. Assustador, também. O contrário de fácil ou de simples.

Olivia tem a ver comigo, Sandra tem a ver comigo. Estamos todas implicadas nesse mito da maternidade que nos esmaga e que lamentavelmente ajudamos a reproduzir. Somos cúmplices de nossos algozes históricos quando chamamos uma mulher como Sandra de “safada”, por ter escolhido não se tornar mãe da forma desesperada e desesperadora que suas circunstâncias lhe permitiram. Nem posso alcançar a solidão e o horror de Sandra parindo um bebê num banheiro, escondida, cortando ela mesma o cordão umbilical, amamentando a criança para poder entregá-la para ser adotada por quem dela poderia se tornar mãe.

Para alcançarmos a dignidade, precisamos dizer o mais difícil. O muito mais difícil: #SomosTodasSandra. Eu sou.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum


Crítica: Olmo e a Gaivota

11/10/2015 por Fabricio Duque no Vertentes do Cinema

Há uma tendência em nossa contemporaneidade de “confundir" gêneros em uma mesma obra cinematográfica, tendo o comportamento do documentário mais ficcional e a ficção mais documental. Esse hibridismo “transgressor" busca “ampliar" possibilidades de se contar uma história. Mas a polêmica é grande. No Festival do Rio 2015, dois “documentários” (parecidos por causa de sua “câmera-mosca" à moda de Frederick Wiseman) concorrem ao Troféu Redentor de Melhor Longa-Metragem. “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos, assume-se como tal. E “Olmo e a Gaviota”, em em questão aqui, se incomoda com esta definição, “atestando" por “a mais b” que a obra apresentada é "totalmente" ficcional, representa o mais recente e aguardado filme de Petra Costa (que nos “presenteou" com “Elena”), que co-dirige com a dinamarquesa Lea Glob (do curta “Meeting My Father”). "Olmo e a Gaviota” já é apresentado como “peixe grande”, devido a produção executiva de Tim Robbins e por ter sido editado (montado por Marina Meliande) na produtora Zentropa (de Lars von Trier - no mesmo lugar que “estava sendo filmado Ninfomaníaca”). Contudo, nada disso significaria se não tivesse a competência sensível de nossa diretora brasileira. É um filme sobre o universo criativo-pessoal da peça “A Gaivota”, de Tchekov, que se utiliza de elementos reais (como a própria gravidez da protagonista para construir sua “mise-en-scène”, colocando seu "jogo de cena”, pela metalinguagem do próprio teatro e pela encenação naturalista de seus atores-personagens, “cúmplices" nas “vulnerabilidades” espontâneas de um casal real que improvisa o próprio relacionamento. É uma “viagem" na própria sinopse que nos “ambienta" na travessia pelo labirinto da psique de Olivia Corsini, uma atriz italiana intempestiva que se prepara para atuar na peça. Quando o espetáculo começa a tomar forma, Olivia e seu companheiro francês Serge Nicolai (muito parecido com o jeito do nosso ator Caco Ciocler), que haviam se conhecido anos antes nos ensaios do Théâtre du Soleil, descobrem que ela está grávida. O filme tem uma nova virada quando o que parecia ser encenação revela-se como a própria vida. Ou seria o inverso? Esta investigação do processo criativo nos convida a questionar o que é real, o que é imaginário e o que celebramos e sacrificamos em nossas vidas. Assim, a câmera poética-hipnótica-contemplativa-intimista-pessoal-lisérgica-existencialista “indica" a jornada, entre processos de aceitação, ensaios profissionais, picardias cúmplices, respeitos sentimentais e linguagens multiculturais. É uma experiência “poliglota”. Suas línguas se misturam no ritmo cadenciado das nuances “se perder na loucura”. Não há como, implicitamente, não referenciarmos a outra peça, “A Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, que diz que "há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis”. A inferência acontece pelo paralelismo de um “ser materno” que necessita abrir “mão" de sua liberdade, de sua profissão e até mesmo do “cálcio de seus dentes” para cuidar de outro “ser”. Entre “empecilhos”, “compromissos”, “prisões”, “incertezas”, “chá de bebê" “sacrifícios”, “gordas de Fellini" e análises universais “exacerbadas” (e “abstratas") das decisões de seus futuro (“fim da carreira”), o filme traduz toda sua adjetivação sóbria, madura, sensata e calma (“mais doce, mais sólida, menos nervosa, menos passional”). “Protegido de tudo quando se faz teatro”, diz-se, criando metáforas da peça com a própria vida (que está sendo interpretada), mesmo quando a própria diretora “interfere” (interativa) no que se vê, “estimulando mais análise” e a polêmica da “infidelidade”. Capta-se o que “vai na mente e na memória inconsolável” e ou a “pseudo" crença de que “o filho é a solução para resolver a solidão” e ou do “ciúme do tempo” que a “rouba”, sem esquecer o “universo" parisiense do humor ácido e perspicaz (“buquê de psicopata”). Concluindo, uma obra-prima. Um filme sensível, deliciosamente degustado, de uma excelente competência técnica, que “aprisiona" o espectador nas especificidades-particulares-únicas-idiossincráticas de duas existências (esperando a terceira) da vida privada. Recomendadíssimo. Estreia nos cinemas no dia cinco de novembro deste ano. Vamos lotar os cinemas!